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Im-permanências

[textos resultantes do processo de orientação conceitual, 2016]

Corpo de carne. Corpo de pedra. Corpo de luz.

Christine Greiner

 

Imagina-se um ambiente onde materialidades se encontram e as percepções se embaralham como uma rede de afetos indistintos.

Há sonoridades táteis.

 

Gestos que se escutam.

 

Imagens quase invisíveis.

 

A composição das pedras sugere  uma gramática particular com dimensões variadas que partem de grandes blocos, até pequenos fragmentos, nos quais tudo parece se diluir em areia e deserto.

 

Na memória deste lugar circulam imagens de experiências autobiográficas e histórias distantes, imaginadas.

 

A lembrança de um jardim em Quioto que nunca se conheceu.

 

A pedra silenciada pelo holocausto.

 

O caminho do mar.

 

Há também um movimento que insiste.

 

Quase gesto.

 

Quase fala.

 

Uma passagem onde se negligencia toda fagulha de comunicação.

 

É no murmúrio da natureza reinventada que se abrem os caminhos.

 

Sombras, fotografias e uma certa vermelhidão enredada que dilacera a opacidade da instalação, lembrando a condição alérgica das mãos da artista.

 

Lá está o gesto que não apenas se vê, mas entra na pele como trilha, ferida ou cicatriz.

 

Talvez seja apenas a contemplação de um corpo que percebe a si mesmo quando se depara com o outro.

 

Talvez um exercício de erosão.

 

Ali se escapa do discurso e o fluxo coloca em crise os sistemas habituais de representação, misturando lembranças e vida num território sem nome e sem fronteiras.

 

O convite é, ao mesmo tempo, ambíguo e claro.

 

Caminhar por texturas onde vazio e ruína se esparramam em abundância e quietude.

 

 

 

Silvio Ferraz

 

O projeto Convergências, de Alessandra Bochio e Felipe Merker Castellani põe em relação o visual e sonoro e remetem obrigatoriamente à questão do espaço e do tempo. O projeto em sua origem já é multisensorial e reflete outros trabalhos da dupla formada por uma artista visual e um compositor. O uso da pedra como um dos materiais mais evidentes do projeto já traz em si um cruzamento entre sonoridade, visualidade e tato: a ideia da textura. Pequenas pedras juntas, reunidas pela proximidade espacial e temporal levam a uma síntese granular do som e da imagem, uma escuta e visão gestáltica onde cada ponto tem importância mas se perde no incontável.

 

No senso comum, o som é da ordem da sucessão enquanto a imagem visual é da ordem do espaço, da presença em simultâneo. Mas se as coisas são assim no mundo cotidiano, nas artes outras dimensões se manifestam. Paul Klee, em diversas de suas aulas na Bauhaus, fala do tempo na imagem visual. O olho não apreende tudo de vez, na esperada simultaneidade, ele passeia por pontos sucessivos. Observa também que não só o olho passeia, como há tendências neste percurso; pontos que chamam mais ou menos a atenção, um jogo constante entre as velocidades e paradas de percurso.

 

Lado a lado com as propostas de Klee, músicos pensaram a música no espaço. Debussy, no início do século XX, falava da música ao ar livre – musique en plein air –, uma música que espelharia sonoramente as folhas das árvores, as árvores, os passantes e coisas diversas em um parque. Uma música para se passear dentro, música no espaço. Se o olho dá a sucessão ao visual, o ouvido daria a simultaneidade. Cada som, quando produzido, permanece seja na memória seja enquanto reverberação. Sons assim, aparentemente sucessivos, se sobrepõem. Devém assim a ideia da síntese granular: um som contínuo realizado por centenas de ataques de curtíssima duração no pequeno espaço de um segundo.

 

Não bastasse este aspecto simples, outros mais profundos trazem a simultaneidade e os desfazimentos da sucessão no mundo dos sons. Sons mais agudos são notados e codificados antes de sons graves. Quando ouvimos sons aparentemente simultâneos eles de fato não estão. E um som agudo tocado após um grave, pode simplesmente inverter a flecha do tempo. Indo mais longe, na década de 1980 o ornitólogo Jacques Vielliard observou o canto quase desconhecido dos beija-flor. Este canto é formado por sequências de cerca de quarenta ataques, quarenta sílabas, em um segundo. Nosso ouvido tem um limite de integração de sons onde sons disparados a um intervalo de tempo muito pequenos se somam. Assim, o que o beija-flor ouve como uma sucessão, nós ouvimos apenas como um click.

 

Outro aspecto importante nas relações entre som e espaço, é a passagem da música que antes era ouvida vinda de uma orquestra que vemos e localizamos, para se nascer agora de um som que não se consegue localizar. A separação entre fonte que produz um som e sua emissão de fato, através dos alto-falantes proporcionou um passo importante para um novo domínio de escuta: o da escuta imersiva.

 

Desde as instalações sonoras dos anos 1950-60 não se ouve mais uma música apenas como se ela fosse algo que acontece fora de nosso corpo, como extensiva a nosso corpo, mas agora ouve-se também como se ela emanasse de nosso corpo, indistinta, inextensiva ao corpo, no que foi chamado de escuta imersiva.

John Cage relata sua experiência dentro de uma câmara anecoica onde ele ouve seu próprio corpo, as experimentações dos compositores das chamadas música minimalista e repetitiva norte-americana, fizeram sua vez propondo músicas que se davam com apenas um acorde tocado por quanto tempo se pudesse (La Monte Young – Composition #9, 1960), músicas montadas sobre uma só frase reiterada incessantemente e lentamente se transformando por adições de frases subjacentes (Steve Reich – Music for 18 Musicians). A sucessão, aquela que nos garantia um antes e um depois foi assim sendo desfeita, traída, enganada, não apenas pela repetição incessante, mas também pela alternância incessante, onde antes e depois perdem suas razões.

 

A música de permutações de pequenas peças, como um móbile de Calder feito de sons, também desfaz a sucessão e instaura o espaço. Assim o espaço passou a ser não mais apenas aquilo que identificamos pelo olho e pelo tato, mas também pelo som e pelo ouvido; pela presença de um som, de uma constante. A imagem, esta passaria a ganhar o tempo mais e mais com os recursos, da lanterna mágica, do fenatoscópio, do zoopraxinoscópio ao vídeo digital. Mas também daria outro passo. A imagem visual não só conta o que o olho vê mas também o que o ouvido pode ouvir. A imagem visual de gotas d’agua escorrendo por uma ou mais pedras tem um som, tem um timbre, tem um ritmo.

 

O tato tem som e o som é tátil; e todo corpo kinético tem um som e o som tem uma kinesis. Assim, a relação entre som e imagem, entre música e visualidade, narra um jogo que a toda hora muda suas posições e que com isto imprime um ritmo que ora reúne, ora separa sonoridade e visualidade.

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